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Raklot – Contos

Contos19/07/2015Gene
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A Fera da Ilha Solitária

 

Era a primeira vez que Borjum remava conosco. O garoto, se é que com aquele tamanho poderia ainda ser chamado de ‘garoto’, estava empolgado com a ideia de pertencer à tripulação do Tarjem, meu navio. Sempre escolhi meus homens com muito cuidado, buscando não apenas os mais fortes e resistentes como também os mais corajosos e, em todas as minhas viagens para o sul, tive a sorte de contar com uma boa tripulação.

Borjum era filho de Bor, meu irmão mais velho que havia morrido durante o último inverno. Agora, o rapaz era o homem da casa e, como tal, tinha que cuidar de sua mãe e seus sete irmãos ainda crianças. Ainda o chamávamos pelo seu nome de criança, claro, pois este nunca havia estado em batalha e não sabia nada sobre o que fazer com uma mulher em seus braços.

Talvez – pensei – quando estivermos na cidade de Perúntia, o jovem Borjum possa conhecer as mulheres vorianas e quem sabe meter-se em alguma briga nas docas daquele lugar. Talvez aí, Borjum nal Bor, o rapaz, tenha a chance de se tornar Bor, o jovem.

O Tarjem havia deixado nossa vila, perto do Bosque Alto, às margens do Rio da Prata, dois dias atrás e agora navegávamos com um clima bom em direção ao Império Voriano. Levávamos peles de lontra e presas de morsa para trocar por grãos e tecidos vorianos e eu esperava encontrar algumas espadas de boa qualidade no mercado de Perúntia. Meus homens remavam, mesmo com o bom vento que acoitava nossa vela azul, e eu havia ordenado isso para fortalecer seus músculos e seus sentidos enquanto eu controlava o Tarjem no leme.

“Senhor Brunn, o garoto rema bem, mas ainda é insolente como o pai dele” Disse Ragnor o Velho, meu segundo em comando.

“Insolente como eu e você já fomos nessa idade, velho amigo. Alguns dias no mar vão deixá-lo mais humilde e respeitoso, pode apostar. ”

O sol estava forte naquela manhã de verão e sabíamos que seria uma viagem tranquila até as terras imperiais. Ragnor, o Velho, não compartilhava do meu otimismo e resmungava o tempo todo, como lhe era comum. Seu filho, Ragnor, o Jovem, era diferente. O rapaz era astuto como uma raposa, forte como um touro e leal como um cão de caça. Eu o havia aceitado em meu navio há dois anos, atendendo a um pedido de seu pai e, até agora, não me arrependia da decisão.

Ragnor o Jovem e Borjum se pareciam fisicamente. Ambos loiros e muito altos, com uma barba curta e olhos astutos. Porém, Ragnor era mais esguio e tinha experiência clara na vida no mar, andando pelo navio como nós, os mais experientes.

“Borjum! Largue esse remo e venha até aqui! ” Gritei “Ragnor, assuma o remo! ” Indiquei ao filho do meu amigo.

Borjum cambaleou entre os remadores e veio até o leme, tentando parecer seguro enquanto a frente do navio empinava sobre uma onda. Inclinei levemente o leme e o Tarjem deu um solavanco que derrubou o garoto.

“Nunca ande pelo navio sem saber aonde pisa, garoto” Disse Ragnor o Velho.

“Sim…sim senhor” Respondeu Borjum gaguejando enquanto se apoiava perto de mim.

“Senhor, estive pensando. Quando chegarmos a Perúntia, vamos ter tempo para conhecer a arena de combate? ” Perguntou

“Perúntia é uma cidade grande, cheia de distritos, vielas, tavernas e templos. Não sei se teremos tempo para divertimento, mas você é livre para tentar achar a tal arena. Eu quero ficar poucos dias naquela cidade então, se você se perder, vai ficar por lá. ”

“Sim, tio. Pode deixar. Não vou me perder! ” Disse o garoto sorrindo.

Sorri de volta e ordenei aos homens que parassem de remar por um tempo. Eu queria sentir o vento que vinha do nosso amado norte e nos levava em direção à tal chamada ‘civilização’ dos vorianos. Era um dia lindo. Bom vento, mar tranquilo, com poucas ondas. Um ótimo dia para estar no mar.

Isso mudou.

Não sei exatamente como aquela tempestade caiu sobre nós. Raios e trovões, ondas fortíssimas e um vento terrível. Tudo havia sido tão rápido que só poderia ser obra de feitiçaria. As ondas batiam forte no convés e meus homens remavam com força, tentando tirar o navio daquela tempestade. Eu segurava o leme com firmeza, mas, em minha idade, isso não era totalmente verdade. Era mais difícil aos quarenta anos do que aos vinte e poucos. Bastaria uma onda mais forte para que eu soltasse o leme e Ragnor, o Jovem, sabia disso.

“Meu senhor! Posso cuidar do leme! ” Gritou ele

Neguei seu pedido e apoiei meus pés contra a madeira do Tarjem, tentando manter o curso.

A cada açoite dos ventos de tempestade, eu sentia o ardor das águas batendo contra minha pele e ouvia o ranger do meu navio sendo arremessado pelas ondas.

Foi então que Nor em sua fúria atingiu o mastro do Tarjem com seus raios e ouvi a madeira rachar, o grito dos meus homens e senti o corpo estremecer quando o barco se partiu, atingido pelos raios do deus das tempestades.

Acordei numa praia de areias negras e pedras. Minhas roupas estavam rasgadas, mas Quebra Ossos, minha espada, ainda estava presa à minha cintura. Tentei ficar de pé mas meu corpo doía terrivelmente. Apenas girei e deitei-me sobre as costas, olhando para o céu negro e suas estrelas.

O som das ondas era forte e notei pedaços grandes de madeira se chocando contra as pedras. Pude perceber fardos que poderiam ser nossa carga ou corpos dos homens que navegavam comigo há anos. Eu estava muito fraco para alcança-los ou para gritar para chamá-los.

Comecei a ouvir meu nome no vento, primeiro como um sussurro e depois forte como um martelo de encontro a uma bigorna. Acreditei, naquele momento, que os deuses me chamavam e que os dias de Brunn nal Kjartan estavam no fim. Apertei o cabo de Quebra Ossos com força para poder chegar com ela ao outro mundo.

“Brunn, meu senhor! O senhor está vivo!” Disseram os dois garotos. Abri os olhos e vi Ragnor o Jovem com o olho esquerdo muito ferido, encharcado e sorridente. Vi também Borjum, meu sobrinho.

“Tio, o senhor vai viver. Venha! ” Disse o garoto enquanto erguia meu corpo cansado e me carregava para longe das águas do mar.

“Algum dos homens sobreviveu? Ragnor, seu pai…? ” Perguntei enquanto Borjum acendia uma fogueira.

“Não senhor. Não encontramos ninguém além do senhor. Creio que os deuses do mar os levaram. ” Disse Ragnor. “Somos os últimos. ” Finalizou enquanto limpava o ferimento que no rosto. O mar lhe arrancara o olho esquerdo.

Ficamos encarando o fogo por mais de uma hora. Eu havia sobrevivido. Eu, Brunn, filho de Kjartan. Mas o que eu era agora? Um náufrago sem riquezas, perdido em alguma ilha no sul de Seldros com dois dos meus homens. Não havia muito a fazer até amanhecer e pedi a Borjum que vigiasse o fogo enquanto descansávamos.

Porém, o descanso não durou muito. Borjum nos acordou sussurrando.

“Há alguma coisa na floresta, tio. Algo se move rápido demais para ser visto. É melhor ficarmos prontos” disse o garoto, segurando um machado na mão esquerda.

Os três ficamos sentados, atentos e com as armas prontas, mas nada se moveu na escuridão. Talvez o rapaz estivesse vendo coisas. As fadas das florestas e os duendes nos pregam peças, mas muitas vezes é nossa cabeça cheia de preocupações e medos que nos faz temer a noite.

Alimentei o fogo segurando o cabo de Quebra Ossos depois de quase dez minutos encarando a floresta. “Esqueça isso Borjum. Devem ser animais. ” Resmunguei. “Ragnor, fique de olho. Borjum, durma um pouco. ” Ordenei.

Enquanto me aliviava perto do acampamento, ouvi um som desconhecido, como um urro furioso dentro de uma caverna. Vinha da floresta. Corri em direção aos rapazes e saquei Quebra Ossos. Borjum segurava seu machado e recuava até onde eu estava, encarando a floresta. Ragnor segurava um pedaço grande de madeira com as duas mãos e havia fincado seus pés de costas para o fogo.

Os três encaramos a floresta por alguns minutos, ouvindo os urros demoníacos que vinham da escuridão enquanto o matagal se agitava ao som de alguma criatura.

Então, algo foi arremessado em nossa direção. Era um corpo que se estatelou diante de nós. Pude ouvir o som de ossos rachando segundos antes, seguidos de um grito horrível. O corpo jazia diante de nós, à luz da fogueira. Estava quebrado, dobrado sobre si mesmo como uma boneca de trapo. Era Ragnor o Velho.

Seu filho arregalou o único olho que tinha e gritou numa mistura de ódio e dor e, levantando alto o pedaço de madeira, correu em direção à floresta. Olhei para minha direita e notei que Borjum apertava os dentes, esperando minha ordem. Assenti com a cabeça e corremos atrás de Ragnor.

A floresta estava escura e nem mesmo as luas tinham luz suficiente para romper as trevas daquele lugar. Seguimos às cegas, guiados apenas pelos gritos de fúria de Ragnor o Jovem. A medida que avançávamos, os gritos se tornavam mais distantes e algo urrou mais forte. Então, Ragnor foi silenciado.

Borjum e eu estávamos agora numa clareira e o luar chegava até o lugar sem ser interrompido. A grama era alta, chegando à cintura e não havia sinal de Ragnor.

Então, vimos o monstro.

A fera era enorme. Era pouco mais que um vulto negro de dois metros de altura. Seu corpo era peludo e seu cheiro era forte como o de um monte de esterco, sangue e peixe morto. Tinha presas enormes e sua bocarra escancarada pingava sangue. Seus enormes braços, terminados em garras que mais pareciam ganchos de açougueiro estavam igualmente manchadas de sangue fresco. Na mão esquerda, arrastava o corpo inerte de Ragnor.

Borjum recuou e pensei que iria fugir, mas então, gritando o nome de seu pai e de Menehan, o deus dos guerreiros, correu em direção à fera, empunhando seu machado. O garoto saltou sobre o monstro e o golpeou com o machado mais de uma vez. A criatura girou o braço que segurava o corpo de Ragnor e golpeou Borjum, arremessando-os para longe. Então olhou para mim e se lançou com toda sua fúria selvagem.

Tentei esquivar-me, mas as enormes garras rasgaram meu flanco e me jogaram contra uma árvore. Segurei Quebra Ossos com força enquanto via a criatura se aproximar para terminar seu nefasto serviço.

“Menehan me dê forças. Você não vai me matar, monstro! ” Gritei, escorado na árvore.

A criatura parecia sorrir enquanto se aproximava, devagar.

Rosnava e babava, vindo em minha direção. Seus olhos, amarelos, brilhavam na escuridão e seu enorme corpo peludo ficava maior a cada segundo de sua aproximação.

Apertei com força o cabo da espada e me preparei para a morte. Morreria, sim, mas machucaria aquele monstro antes e, se os deuses sorrissem para mim, o mataria.

A fera estava praticamente sobre mim quando vi o luar refletido na lâmina do machado de Borjum. A arma girou no ar ao ser arremessada e atingiu a criatura no ombro, decepando seu braço direito. Olhei na direção de Borjum e lá estava ele, de pé. O garoto vivia.

O monstro urrou de dor e se lançou sobre ele, enterrando suas garras no peito de Borjum e erguendo seu corpo em direção às luas. A criatura parecia gargalhar.

Era minha hora. Os deuses me atiraram naquele lugar e eu perdera minha tripulação, meu navio e agora, o filho de meu irmão, que salvara minha vida, estava morto.

Rosnei ficando de pé e caminhei na direção do monstro. Este, ainda urrando com o corpo de Borjum preso às suas garras, olhou em minha direção. Corri. Corri como nunca, impulsionado pelo ódio e pelo medo. Corri em sua direção empunhando Quebra Ossos.

O monstro tentou me atingir com a mão que lhe restava e com o corpo de meu sobrinho mas eu me joguei, deslizando pela grama encharcada de sangue e o golpe passou sobre minha cabeça. A criatura não teve tempo de reagir e sentiu a lâmina de Quebra Ossos em sua barriga, penetrando até o cabo. Sem olhar para cima, rasguei o abdômen do monstro de um lado ao outro, gritando o nome dos meus homens.

A criatura cambaleou enquanto recuava e escorregou em seu próprio sangue e vísceras. Gritei o nome de cada um dos meus homens enquanto golpeava seu corpo negro com minha espada. O monstro urrava de dor e eu, de ódio.

Não me lembro ao certo de quando parei de estocar a criatura com minha espada. Senti a luz do sol surgir por trás das árvores e olhei para o corpo do monstro. Quebra Ossos, cravada em seu peito num último golpe, era totalmente vermelha, assim como eu, encharcado de sangue. Gritei o nome de Menehan para que o deus dos guerreiros visse minha vitória e aceitasse meus homens em seu salão. Gritei o nome de minha espada e o meu próprio para que todos os deuses ouvissem.

“Brunn Nal Kjartan. ” Sussurrei, cansado no fim. Arranquei Quebra Ossos do corpo da fera e cambaleei em direção da praia, onde caí, exausto.

Não sei por quanto tempo dormi, mas segundo os marinheiros vorianos que me encontraram na praia, meus ferimentos teriam me matado e as gaivotas teriam devorado minha carne, como fizeram com meus homens. Mas, de alguma forma, os deuses haviam me poupado desse fim.

Nenhum dos vorianos viu a fera ou a matança na clareira, mas todos comentaram que naquelas ilhas viviam criaturas de pelagem negra e dentes como adagas que comiam a carne dos náufragos. Eles as chamavam de vagaji, e me contaram que eram, originalmente, marinheiros perdidos que, em desespero, experimentaram a carne de seus companheiros e, por isso, se tornaram monstros infernais.

Anos depois, de volta a minha aldeia, ainda conto a história dos vagaji e de como sobrevivi ao encontro com a fera da ilha, nos mares vorianos, graças à bravura dos jovens Ragnor e Borjum. Os olhos amarelos da criatura ainda povoam meus pesadelos mas me lembro do sorriso daqueles jovens corajosos que lutaram ao meu lado e penso, como um verdadeiro carman, que os deuses guiaram nossas armas naquela noite, vinte anos atrás.

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Eugênio Cavalcante

Eugênio "Gene" Cavalcante Mestrando e jogando qualquer coisa desde 1992.

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2 Comments:

  • Alexandre Magno

    setembro 18, 2015 / at 10:56 amsvgResponder

    Sou um jogador de MMORPG (PC) há um tempo considerável e sempre tive muita vontade de conhecer o RPG de mesa, sou de Brasília e graças ao D30 vejo uma oportunidade. Abraços!

  • Alexandre Magno

    setembro 18, 2015 / at 11:05 amsvgResponder

    Eugênio Cavalcante, parabéns pelo texto, ficou muito bom, será de grande valia para a minha linha de ideias sobre aventuras, principalmente as que se relacionam com o texto. Obrigado!

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