Raklot – Contos
Caçador de Recompensas
A chuva castigava o vilarejo Dormun com a fúria de Nor e os raios – que pareciam lançados contra o mundo pelo deus das tempestades; clareavam a noite, criando sombras entre as casas e assustando os animais nos estábulos.
Qualquer carman, em sã consciência, sabia que não deveria deixar a segurança das paredes de pedra e barro numa noite como aquela. Mas Urfen não era qualquer carman. Era o campeão de Dormun, primo do senhor daquelas terras e um guerreiro famoso. Urfen, o Bravo. Urfen Mão de Aço. Urfen, o Degolador. Várias alcunhas representavam suas diferentes facetas e as batalhas eram visíveis em cicatrizes pelos braços, rosto e inúmeras outras marcavam o corpo por baixo das roupas. Era muito alto e possuía uma força física invejável, e apesar de sua corpulência era rápido como uma raposa. Seus cabelos ruivos e longos estavam constantemente presos numa enorme trança enrolada no pescoço abaixo da barba, adornada com anéis de ouro e prata. Urfen era temível e sua bravura e habilidade se comparavam apenas à obediência e lealdade que mantinha para com seu senhor, Ubben de Dormun.
Urfen havia acabado de chegar ao vilarejo e montava um garanhão branco. Sua longa capa chegava a cobrir grande parte do dorso de sua montaria. Outros dois guerreiros ladeavam o campeão, igualmente equipados com capas grossas que protegiam da forte chuva. Os três cavaleiros passaram pela rua principal da aldeia, subindo pela colina até Dormundrin, a torre de pedra de Ubben. O castelo fora erguido há duas gerações sobre as ruínas de uma torre de vigia dos Antigos e era uma construção imponente e, praticamente, inexpugnável. De um lado havia a paliçada que separava Dormundrin da aldeia, enquanto na face norte da fortaleza, se abria um precipício altíssimo de frente para o mar.
O Degolador e seus homens chegaram até o portão onde foram reconhecidos pelo homem alto e careca que mantinha vigília. Não houve questionamentos ou saudações. Os três passaram bruscamente pelo portão que se fechou em seguida. Apearam em frente à torre de pedra e, depois de sacudir as capas e limpar o excesso de lama, caminharam até a porta do castelo onde foram recebidos por dois guardas. Os recém-chegados caminharam pelo corredor principal, subindo alguns degraus até o salão iluminado por diversas tochas. No meio do aposento, uma elevação estendia uma cadeira de pedra onde estava o senhor de Dormun.
– Urfen! Você chegou antes do previsto! Uma pena que Nor tenha castigado você e seus guerreiros ao longo da estrada! Venha! Venha aquecer-se perto do fogo! – Disse o njal apontando para as brasas no centro do salão.
– Meu senhor. – Disse o enorme guerreiro ruivo jogando a capa para um criado. – Tenho boas notícias. Trouxe o que me pediu. – disse apontando para um dos homens que agora entregava sua capa ao servo.
Ubben de Dormun olhou fixamente para o homem que vestia uma roupa grossa e usava uma armadura de couro de um de seus guerreiros. Este virou-se e revelou sua verdadeira aparência. Sua pele morena e olhos amendoados, escuros, sua barba e cabelos negros encharcados pela tempestade escorriam deixando visíveis as orelhas pontiagudas. O homem sorriu e Ubben pôde ver as presas características dos vorianos.
– Saudações, njal Ubben, senhor de Dormun, soberano em Dormundrin, filho de Udrich, o valoroso. – disse o estranho – Sou Tsen-hai de Vória.
Ubben sorriu. Tinha diante de si um dos membros da Legião Voriana. Um general. Um homem valioso para seus planos futuros. Sorrindo, o líder se aproximou do voriano e o segurou pelos ombros.
– Bem vindo, general Tsen-hai! Bem vindo ao meu castelo! Venha, desfrute de um bom hidromel e da fartura da minha casa. Aqui, você é bem vindo!
– Sou muito grato, senhor Ubben. É bom ter chegado a salvo depois de deixar minha terra natal.
Os homens sentaram ao redor das brasas enquanto Ubben voltou para o trono de pedra. Sentou-se de maneira desajeitada. Ubben era um homem magro e alto que já havia visto dias melhores. Mas ainda conservava o porte de guerreiro. Sorriu, olhando para seu convidado enquanto o estrangeiro se aquecia e era alimentado. Tudo daria certo agora. Os planos de conseguir um destacamento voriano para levar a guerra contra seu vizinho, Torin nan Ghor, e, com isso, anexar as terras do rival estavam dando certo.
Enquanto Ubben pensava a respeito, sem conseguir disfarçar o sorriso, um relâmpago cortou o silêncio e fez alguns homens se assustarem.
– Não é possível! Homens de Dormun assustados com a fúria de Nor nesta época do ano? Uma chuva um pouco mais forte e vocês se borram? Cães amedrontados! – disse gargalhando
Alguns homens acompanharam a risada do njal, inclusive Urfen e o general voriano. Porém, um dos criados olhava assustado na direção da porta.
– O que foi, filho de uma cadela sarnenta, viu algum fantasma? – Esbravejou Urfen de forma ríspida, gargalhando em seguida.
– Senhor… – respondeu o criado, apontando para a porta.
Todos no salão se viraram para olhar para onde o criado apontara. Ali, subindo os degraus devagar, uma figura encapuzada trazia duas espadas negras, banhadas de sangue.
– Quem ousa invadir meu salão com armas em punho?! – Gritou Ubben
– Fale agora, imbecil! – Complementou Urfen levantando-se já com mão no punho da espada.
O estranho parou. Levantou levemente a cabeça, mostrando apenas o queixo moreno e um sorriso despretensioso adornado por presas vorianas. Com um movimento de ombros, jogou a capa para trás, deixando-a cair pesadamente.
O homem era baixo. Tinha os cabelos emaranhados, negros como os de qualquer voriano e suas orelhas pontiagudas eram enfeitadas por diversos brincos de argola. Vestia um colete de couro surrado por cima das vestes negras. Tinha o aspecto de um simples viajante, mas algo na postura do estranho indicava o contrário. As duas espadas que segurava eram finamente trabalhadas, feitas do metal negro dos deuses, o krinium. O sujeito sorriu de novo e levantou o rosto mostrando seus belos olhos azuis, algo incomum entre os membros de sua raça.
– Meu nome… é Laimor… e o general vem comigo. Vocês podem tentar impedir, mas eu prefiro levá-lo sem matar mais de vocês.
– Insolente! – gritou o njal – Matem esse verme! – vociferou.
Três guerreiros sacaram as espadas e correram na direção de Laimor. O primeiro, um homem loiro e gordo desferiu um golpe vertical, tentando esmagar o crânio do voriano. Laimor deu um passo para o lado, deixando a espada passar a alguns centímetros de seu rosto e, em seguida, girou nos calcanhares, acertando o homem na nuca com uma das espadas.
O segundo homem, mais jovem e rápido, tentou acertar Laimor pelas costas, mas sua espada foi bloqueada pelas espadas negras, cruzadas num movimento extremamente rápido. Laimor ergueu suas lâminas, fazendo o carman levantar os braços e então chutou entre as pernas do guerreiro, fazendo-o arquear as costas com a dor e soltar a espada, ao passo que as lâminas negras já estavam prontas para cortar o pescoço do rapaz num golpe horizontal.
Sangue espirrou pelo salão enquanto o homem emitia um som gorgolejante. Laimor olhou sorridente para o último guerreiro e disse – Bem, como eu disse, não quero matar mais de vocês, carmans…ao menos não hoje.
– Para trás! – Resmungou o enorme Urfen. – Seu vermezinho asqueroso. Você vai morrer e sua cabeça vai enfeitar a entrada da aldeia. Essas espadas vão ser minhas e você vai desejar nunca ter pisado em Dormun! – rosnou
– Você deve ser o tal “degolador”. Aposto que ganhou esse apelido matando galinhas. – zombou Laimor recuando pouco mais de um metro, avaliando seu enorme adversário, que sacava uma espada.
– Bravatas. Você vai morrer, voriano. – disse Urfen avançando.
O campeão de Dormun saltou na direção de Laimor com um urro selvagem e golpeou com sua espada, procurando o flanco do adversário. Laimor aparou o golpe e encarou o gigante ruivo.
– Ora, finalmente alguém digno de minha atenção.
– Morra! – gritou Urfen atacando a cabeça de Laimor que jogou o pescoço para trás no último segundo, evitando o golpe. Urfen investiu contra o voriano com golpes perfeitos e munidos de uma brutalidade digna do campeão daquelas terras. Porém, Laimor aparava alguns golpes, mas preferindo esquivar-se graciosamente da maioria.
– Pare de dançar e lute como um homem, seu merda! – Gritou Urfen enfurecido
Laimor recuava habilmente com movimentos de finta, que evitavam ser acertado pelos golpes do Degolador, que por sua vez atacava cada vez mais com toda sua agilidade e, apesar da aparência de cansaço, Urfen parecia começar a entender um padrão nos movimentos do voriano. Depois de uma sequência rápida de estocadas, Urfen girou o corpo e sua espada fez um arco diagonal, de cima para baixo, contra o flanco esquerdo de Laimor que girou o corpo, deixando que a arma passasse direto sem o tocar. Porém, o Degolador alterou a trajetória da espada, estocando uma vez mais. O voriano mal havia se esquivado da primeira tentativa quando viu a ponta da espada vindo em sua direção. Instintivamente, arqueou o corpo, jogando seu peso para trás, evitando o golpe certeiro.
O guerreiro voriano deu três passos rápidos para trás e sorriu. – Essa foi por pouco, degolador… – Então um filete de sangue percorreu sua bochecha esquerda, chegando até os lábios. O voriano arregalou os olhos, surpreso. Limpou o sangue com a ponta dos dedos da mão esquerda e olhou de volta para Urfen. – Por bem pouco. É bom saber que alguém aqui sabe lutar de verdade.
Os dois combatentes se encararam. Laimor sorria, apesar do corte no rosto e Urfen arfava, não por estar cansado, mas por estar em pleno êxtase de batalha.
– Você deve estar cansado, degolador. Vou fazer uma coisa. Prometo que não vou dar nenhum passo mais. Talvez fique fácil para você. – Disse Laimor assumindo uma postura estranha a Urfen, com uma das espadas com a lâmina para trás e a outra para frente. Laimor ficou imóvel como uma rocha e sorriu. – Venha, degolador.
Urfen ficou desconfiado, mas estava furioso demais para pensar com clareza. Nunca havia sido humilhado. Nunca havia errado todos os golpes contra um inimigo. O enorme guerreiro ruivo empunhou sua espada com as duas mãos e atacou. Aquele golpe teria decepado a cabeça de um guerreiro em armadura completa. Porém, resvalou na espada da mão esquerda de Laimor, posicionada à frente, subindo sem causar dano algum. Imediatamente, antes que Urfen pudesse reagir, a espada da mão direita cortou o ar em uma curva perfeita, rasgando a barriga do enorme guerreiro de fora a fora.
Urfen parou, recuando lentamente, incrédulo ao ver suas entranhas vazando pelo corte da espada negra. O campeão soltou sua espada que caiu ruidosamente no chão de pedra e então deixou seu corpo cair de costas enquanto sujava o salão com vísceras e sangue. Laimor fitou o njal, de pé diante do trono e disse mais uma vez: – O general vem comigo.
O som de passos desajeitados chamou a atenção de Laimor. O general voriano corria em terror na direção da porta. O guerreiro de olhos azuis apenas sorriu e guardou as espadas, caminhando em direção ao fugitivo. O general tropeçou no sangue de um dos guardas e tentou levantar, mas Laimor apenas fez um gesto com as duas mãos, como um desenho em pleno ar. Uma luz brilhou entre seus dedos e chamas irromperam de suas mãos como garras de fogo, alcançando o general aterrorizado. O fogo atingiu o voriano e suas roupas queimaram rapidamente. Enquanto o homem gritava de dor, rolando pelo chão, Laimor se aproximou, sacando uma das espadas.
Tsen-hai havia conseguido apagar o fogo e permanecia de joelhos diante de Laimor. Este segurou o general pelos cabelos meio chamuscados e desferiu um único golpe, arrancando-lhe a cabeça.
– Pelos deuses! Você é um feiticeiro! Quem…o que é você?! – Perguntou Ubben escondendo-se atrás de seu trono.
O homem de olhos azuis se virou lentamente, segurando a cabeça do general voriano, e sorriu mostrando as presas. – Sou Laimor, o maior caçador de recompensas ao norte de Vória. E o general vai comigo. – afirmou levantando a cabeça decepada. Olhou em volta procurando algum desafiante e, ao ver que ninguém se atrevia a enfrentá-lo, apontou com a espada para o senhor do castelo.
– Você disse que tinha hidromel?
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