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Reino da Escuridão Eterna – Parte II

A passagem enlameada escondia buracos profundos no solo, feitos pelo repentino surgimento dos esqueletos, o que dificultava o caminho até a ruína à frente. Seguindo cautelosamente, o grupo alcançou as pedras há muito gastas que levam até a entrada da antiga capela. É difícil imaginar que o lugar um dia abrigou uma ordem religiosa do bem, com pregações no meio de um descampado. Mais difícil ainda é entender os motivos que levaram à construção de catacumbas profundas no subterrâneo, mesmo que a guerra seja um motivo plausível o suficiente para uma casa de orações resguardar os restos mortais de seus devotos.

A descida foi lenta, em grande parte pela falta de iluminação, mas também pelos escombros de pedra e restos de madeira podre terem se tornado armadilhas naturais, prontas para tragar para as profundezas um herói desatento. Dmitri logo toma a dianteira para orientar o caminho dos demais, enquanto Jake e Ceoris observam inquietos a casa que um dia abrigou seguidores do bondoso deus St. Cuthbert. O percurso até aqui mostrou que o local fora completamente blasfemado por criaturas malignas.

Ao fundo era possível ver os restos de um painel com imagens agora irreconhecíveis, por onde descia uma escadaria de pedra, tão íngreme quanto longa. Descendo com a maior prudência possível, os heróis logo percebem uma luz tremeluzente e fraca dançando pelas paredes da pedra coberta de musgos e vinda de uma profundidade de cerca de dois andares abaixo do piso principal. E lá do fundo é possível ouvir um murmúrio cadenciado de voz débil, arrastada numa espécie de cântico baixo que, a princípio, parece ser uma língua desconhecida para todos, até que Jake vira-se aos demais.

– É um dialeto derivado da língua abissal, diz mais ou menos o seguinte: Tsuggtmoy me conceda uma centelha de sua energia, seus poderes, para que eu possa servir meus mestres e trazer seus servos para este mundo. – Cochicha o clérigo.

Ao terminar a descida, os heróis veem que a câmara inferior é muito maior do que a capela acima, mas todos têm o conhecimento de que alguns templos religiosos destinam áreas maiores para o confinamento dos restos mortais de seus devotos e líderes espirituais. A escadaria abre-se em uma das laterais mais compridas do aposento retangular, como uma ampla catacumba com túmulos e lápides.

O som da canção maléfica vem da esquerda, onde gesticula um ser encapuzado com um manto de coloração arroxeada e lilás – aparentemente um homem. Segurando um cajado de madeira, ele faz reverências à frente de um portal de pedra completamente marcado por runas. De dentro, uma profusão de efeitos luminosos em tons escuros se movimenta num turbilhão de sentidos ao mesmo tempo em que forma uma imagem estática, um símbolo: uma espiral negra. A impressão é de que uma cachoeira silenciosa se move formando uma cortina que cai sobre uma porta.

As luzes avistadas anteriormente vinham de grandes candelabros de ferro com fogo e brasas posicionados aos pares em três pontos por onde iluminam fracamente a cripta. À direita, mais afastados dos últimos focos de luz, se erguiam duas jaulas escoradas na parede. Dentro delas, duas pessoas inertes. Por todo o terreno, grandes ataúdes entalhados com motivos religiosos repousam desgastados pelo tempo e quebrados por escombros que desprenderam-se do teto acima.

Antes que qualquer um pudesse se mover, e mais rápido que o próprio pensamento, Fino segurou firmemente um pedaço de metal trazido das profundezas da terra, enquanto moveu inaudivelmente os lábios. Em milésimos de segundo, o homem estancou, encerrando uma palavra pela metade e parando o movimento do cajado.

-Ele está imóvel, paralisado! Acho bom vocês irem rápido até lá para fazer alguma coisa enquanto seguro ele daqui – bradou o svirfneblin.

Em questão de segundos, Dmitri estava em cima do cultista solitário derrubando-o ao chão e prendendo com uma corda. Enquanto forçava o nó, o suelita sente um calafrio percorrer seu corpo, o homem tinha os olhos vidrados para o além, com o globo ocular branco como se estivesse em transe. A jovem Ceoris e o guerreiro Elizir já estavam próximos do fanático, enquanto o clérigo de Pelor corria até os prisioneiros para tentar libertá-los.

E foi nesse instante que todos subitamente pararam.

Um zumbido preencheu todo o salão, ecoando o som das profundezas do inferno personificado em um bater de asas de inseto. Do portal onde o cultista mantivera atenção momentos antes, uma aberração começava a se manifestar. Maior do que qualquer dos heróis, uma criatura insetóide surgiu do lugar obscuro que ficava do outro lado do portal para este mundo. Com sua carapaça parte óssea, parte esponjosa, marcada por um sorriso zombeteiro, cerrado por fileiras de dentes pontiagudos, e por olhos da cor de sangue. O monstro possuía dois pares de braços firmes que terminavam em pinças e membros com garras, além de dois pares de asas com uma membrana muscular irrigada por incontáveis veias pulsantes. Elas desciam até formar uma enorme cauda com um tipo de esporão na ponta, que era quase do tamanho de uma espada longa. O corpo todo daquela criatura parecia ser feito de fungos e pele derretida. Parecia um pesadelo tomando vida diante dos incrédulos aventureiros.

O barulho emitido pela criatura sobrepujou qualquer outro e encheu de pavor e medo o coração de todos. Logo no instante em que aquela aberração surgiu, Jake soube que tratava-se de um demônio e isso o deixou pasmo ao ponto de petrificar-lhe a carne – o que mais tarde ele entendeu ser um efeito gerado pela própria corrupção emanada do monstro. O restante tomou fôlego e partiu para o combate, visto que o demônio trouxera consigo alguns seres menores, como os enfrentados anteriormente.

Com um voo rápido, o demônio pairou em frente à paladina ao mesmo tempo em que sua cauda se agitou transpassando o peito da jovem, como se a armadura que ela usava fosse feita de couro e não de sólido metal. No local da ferida, a pele derreteu e a carne começou a apodrecer, esguichando sangue das artérias, antes mesmo que Ceoris entendesse o que aconteceu. Dmitri estava próximo e, tomado por um ímpeto espadachim, forçou sua espada rapier contra o demônio, arrancando um visco escuro com o golpe certeiro.

Enquanto o combate se desenrolava mais adiante, o gnomo Fino conjurava uma magia para ajudar os companheiros, quando uma gosma amarelada escorreu do teto caindo quase em sua cabeça. Tentáculos fortes agarraram Fino tentado levá-lo até a gosma. No ponto onde segurava o svirfneblin, a carne queimava. Mais uma vez a mente afiada do gnomo foi sagaz e uma saraivada de fechas mágicas conseguiu dar cabo da criatura. Mas a distração foi o suficiente para libertar o cultista da magia que o havia paralisado.

Com toda essa ação, Jake foi capaz de despertar do seu torpor e colocá-lo de volta na batalha, já que o demônio estava causando grandes estragos a Ceoris e Dmitri. Os demônios menores estavam sendo repelidos pelo guerreiro Elizir, que tentava se livrar da pequena horda para chegar até o grande monstro, porém, sem sucesso na empreitada. Entre a série de fintas e esquivas de Dmitri e a força bruta dos golpes de Ceoris, o demônio começava a dar mostras de enfraquecimento. Jake conseguiu emparelhar-se a Elizir e, juntos, começaram a derrubar os pequenos demônios espalhados por toda a catacumba.

Após um combate extenuante, que exigiu muito sangue do grupo para impedir os avanços do mal, tudo se encerrou com a morte do cultista, atingido por uma bola de fogo desferida por Fino. A atenção voltou aos humanos que estavam encarcerados ao fundo da parede oeste e que, mesmo com toda ação desenrolada próximo a eles, permaneceram caídos em suas celas. Quem chega mais rápido é Ceoris, acompanhada por Jake. Depois de abrir as celas, os dois percebem, horrorizados, que os dois jovens estavam vivos, porém completamente mutilados. Cortes profundos se encontram em várias partes de seus corpos, remendados toscamente com uma grossa linha. Os olhos foram perfurados com algum objeto incandescente que deixara marcas grotescas. É nítida a noção de que os prisioneiros eram usados como objetos ritualísticos para colaborar com as atrocidades invocadas no local. Os primeiros cuidados são realizados, mas o angelical médico não tem muito o que fazer pelas pobres almas.

Fino e Dmitri estão observando o portal, que permanece ativo embora não esteja exatamente funcionando no momento. Todos sabem da necessidade de encontrar uma forma para destruir essa fonte de magia demoníaca. Elizir, que está de prontidão junto à escada é o primeiro a notar um barulho vindo de fora e rapidamente chama a atenção de seus companheiros. Os heróis se entreolham quando ouvem o som de passos descendo pela escadaria atrás deles. Eles se escondem preparados para mais combate – e temerosos, pois o estado em que se encontram é o pior para entrar em uma nova luta.

Para a surpresa de todos, quando as passadas chegam até o piso inferior, surgem dois humanos bem trajados. Um bakluni de cabelos longos e vestindo uma armadura de metal e tecidos belamente bordados com símbolos de Rao, em suas mãos uma grande maça de combate está preparada para uso. A seu lado, um oeridi pouco mais baixo, com as vestes simples e típicas de um pirata (o que é de estranhar devido à enorme distância do porto mais próximo), identidade reforçada pelos dois sabres que ele traz. Os dois observaram o cenário à frente, com os corpos de demônios arrasados e o fedor de morte que impregnara todo o ambiente.

– Algo estava acontecendo aqui! Prepare-se para hostilidade, sinto uma presença demoníaca. – Avisou rispidamente o homem mais alto.

O senso interno de Ceoris e Jake lhes avisava que não eram pessoas malignas, ou que pelo menos não estavam ligados diretamente ao cultista ou às aberrações que ele invocara. Então, na tentativa de evitar um novo combate, o grupo de heróis se revela. Por alguns instantes os grupos se analisaram até iniciarem uma conversa que evolui até compreenderem não havia motivos para embate, já que estavam parcialmente do mesmo lado.

– Meu nome é Venand, sou conhecido como o Chacal do Mar e este cizudo é Serter, nosso bom clérigo de Rao. Nós somos batedores de um grupo maior que conseguiu informações acerca de um atividades malignas pela região, por isso viemos observar a necessidade de uma intervenção. E vocês, o que diabos estavam fazendo por aqui? – Gracejou o oeridi.

Não foi preciso uma explicação muito detalhada para que os dois se convencessem a ajudar na destruição do portal ativo na parede leste. Um esforço conjunto entre clérigos, paladina e mago resultou numa pequena explosão que destroçou o pórtico de energia, fazendo também desabar parte do teto.

Depois de sair das ruínas, todos reuniram-se próximo à carroça e os cavalos, que permaneciam amarrados pouco antes da entrada. Os novos aliados explicaram fazer parte de um pequeno exército, criado para combater a ameaça da Escuridão e do Caos. Serter olhou para o céu e, como se censurasse a escuridão das nuvens e a chuva que tornava a cair gelada sob todos, suspirou de maneira grave. Voltando o rosto aos demais, com seu olhar duro, Serter fala em tom professoral.

– Há incontáveis eras perdidas no tempo, a terra quase caiu sob domínio de um deus negro: Tharizdun! A adoração ao senhor da Escuridão Eterna tomou conta do coração de pessoas propensas à perversidade e um culto maligno foi criado para abalar a paz das terras civilizadas. No entanto, uma incrível batalha ocorreu entre Tharizdun e aqueles que se opõem ao mal. Infelizmente, as forças do bem não eram capazes de destruí-lo, mas tinham poder suficiente para aprisioná-lo em um plano de existência diferente do nosso, onde o tempo e a vida correm diferentes, um lugar fora da compreensão humana. Apesar disso, seus servos não foram extintos e mantêm secretamente a devoção em trazer seu mestre de volta. Eles usam disfarces e se embrenham em outros cultos para cometer todo tipo de atrocidade atribuindo os crimes a organizações diferentes, o que dificulta qualquer investida contra Tharizdun. O real plano é libertar o mal supremo para que ele possa governar mais uma vez. Até agora, todas as tentativas foram em vão, mas seus vassalos estão perto. É preciso que surjam heróis, que se levantem contra o apocalipse e se sacrifiquem por todos os povos de bem. Não estou falando apenas de suas terras, seus familiares, sua raça ou religião, mas falo de tudo o que conhecemos, toda a existência está ameaçada! – Nesse ponto, a fala de Serter é levemente cortada por Venand, que se entusiasma e estufa o peito falando.

– E é por isso que estamos aqui. – Explica o pirata. – Muitas vidas fora perdidas para que conseguíssemos informações relevantes sobre o culto da Escuridão Eterna. Descobrimos que diversos rituais estão sendo feitos para quebrar as runas mágicas que prendem o senhor negro. Para isso estão sendo coletadas por vários locais das Flannaes, pérolas de escuridão, chamadas de Cisto Negro. Esses globos de pura maldade foram criados pelo senhor do escuro quando anteviu sua queda e já planejava um retorno. Nós fazemos parte de um pequeno exército criado para combater a ameaça de Tharizdun. Lutamos sem receber glórias ou reconhecimento, poucos acreditam em nossa missão, mas sabemos que este grupo é o último baluarte do bem contra a maré do caos e do mal. Fazemos parte dos Guardiões da Justiça. – Se enaltece Venand.

O grupo de heróis mal sabe o que dizer diante da quantidade de informações, mas uma coisa entendem: os dois falam a verdade. Todos concordaram, e Jake realizou o ritual que impediria qualquer um de mentir em sua presença.

Divididos entre a curiosidade por conhecer os Guardiões da Justiça, e a missão de ir até a cidade de Shandalanar, fica decidido que Serter os acompanhará para ajudar enquanto Venand segue de volta aos guardiões. Todos devem se encontrar novamente em algumas semanas. Antes, porém, retornaram à vila da Torre Murq para seguir com o objetivo que os levou até ali: descobrir que tipo de mal assola Shandalanar.

Leia o glossário para compreender alguns termos e ler os capítulos anteriores dessa aventura.

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Janary Damacena

Sempre interessado em narrações fantásticas e de horror, apreciador de boa interpretação e defensor da regra de ouro.

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